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Revisitando Carolina Maria de Jesus

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Revisitando Carolina Maria de Jesus
Foto: Divulgação
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Revisitar Carolina, num olhar crítico, tanto por meio da pobreza vivenciada por ela, que continua atual, quanto pela mulher preta e culta que apresentou ser, apesar de considerada socialmente inculta, graças ao desconhecimento de sua origem, à sobrevivência lateral à miséria e por pertencer a uma grupo étnico à época inferiorizado, é capaz de enriquecer até hoje questões sociais que ainda se mantém confusas.

Carolina demonstrou, em sua obra, que não desejava ter um homem dentro de casa por medo, já que a rotina de seu meio retratava diariamente mulheres vizinhas apanhando de seus maridos, ao mesmo tempo em que trabalhavam para sustentar seus lares, lavando roupa pra fora. Uma ainda condição vivenciada e sofrida por um grande número de mulheres pretas.

Carolina teve um filho de cada pai. Dizia que seus filhos não tinham o que queriam, mas tinham o que era necessário: uma grande característica da mulher guerreira e ancestral.

Hoje, penso que Carolina deve ser revisitada com dois olhares: tanto pela riqueza de detalhes explícita em sua obra, quanto pela evolução ancestral que atualmente buscamos, da qual perdemos a raiz, pela dificuldade que perdura da mulher preta de encontrar ideologias que sustentem sua crença na ancestralidade.

Há um boom de pessoas querendo destrinchar seus interesses internet à fora, e ganhar dinheiro com visibilidade e hashtags, mas sem entender que se não cortar o cordão umbilical da essência colonial, por meio do qual a nossa sociedade se alimenta há mais de 5 séculos, a atuação continuará à favor do sistema patriarcal, exageradamente capitalista, colonialista, embranquecido, arcaico e fundamentalista.

A sororidade feminina enquanto conceito ainda falho

A sororidade feminina existiu com força no passado, quando as mulheres lideravam suas tribos por meio de condições matriarcais, tendo a irmandade entre mulheres enquanto modelo de gestão.

Já a rivalidade feminina teve início com o cristianismo, por meio do casamento monogâmico, da cultura patriarcal, naturalmente machista, e de maridos que mantinham suas esposas e famílias em casa, enquanto suas amantes, casos extraconjugais e características homossexuais eram vivenciados com requinte e prazer do lado de fora, na rua e em bordeis. Essa cultura do homem que busca diversão fora, mantendo seus deveres e obrigações atrelados ao lado de dentro, nutre até hoje, em quem vivencia apenas o lado de dentro, sentimentos negativos quanto ao que é experienciado do lado de fora.

Por séculos, esposas nutriram raiva de escravizadas e trabalhadoras do sexo, castigando-as física e moralmente, entranhando um sentimento de ódio tão nivelado, que acabou se transformando em um modelo cultural em ambas as sociedades, brancas e negras, ultrapassando os anos e chegando aos dias atuais.

As mulheres, em sua maioria, permanecem culturalmente machucadas, e ainda competem pelo status quo entre si, com disputas relacionadas à estética, ao casamento e à condição financeira, sustentando um modelo de raciocínio que ainda interpela o pensamento colonialista cristão.

Por mais instruída que seja, a mulher atual ainda mantém o papel que nos foi dado há mais de 500 anos, quando começou a barganha colonial pela sobrevivência, de matança e disputa, desaguando, hoje, sobretudo em mulheres pretas e pobres, graças à falta de estrutura financeira e oportunidades de mudança. São mulheres que continuam vivenciando o ciclo colonialista por tabela e imposição.

Quarto de Despejo como divisor de águas

Particularmente, Quarto de Despejo é um livro que me dá muitos gatilhos. Por mais que hoje meus filhos e eu não vivamos em um barraco na favela, a história do livro é tão atual para mim e muitas outras mulheres, como foi para a própria Carolina. Enxergo Carolina como uma mulher que repudiava sua pobreza. Era uma mulher culta que ao mesmo tempo não podia afirmar que era, porque não tinha estudo, porque era preta, mãe solo.

Com uma visão mais aprofundada, acredito que ela, enquanto mulher, enxergava as mazelas e vícios dos homens de seu meio, como o alcoolismo e as drogas, e toda a condição que prendia e apreendia as mulheres de seu tempo junto à violência, miséria e exaustão, no entanto, como atuações sociais de defesa às mulheres não tinham força na favela, Carolina também mantinha comportamentos colonialistas, utilizando-os como escudo e modelo de percepção, quando ela diz, em Quarto de Despejo (1955) “Tenho que levar a minha filha Vera Eunice – para lavar roupas. Ela está com dois anos, e não gosta de ficar em casa. Eu ponho o saco na cabeça e levo-a nos braços. Suporto o peso do saco na cabeça e suporto o peso da Vera Eunice nos braços. Tem hora que revolto-me. Depois domino-me. Ela não tem culpa de estar no mundo”.

Conceitos da negritude

Relembrando uma frase de minha avó, “passou de branco, negro é”, percebo alguns conceitos sendo vertidos em questões como o colorismo.

Essa desunião entre os pertencentes às camadas negroides, graças às inúmeras misturas étnicas, responsáveis por transformar nossa sociedade, tem feito com que julgamentos, como quem é mais negro ou quem é mais branco, atrapalhem a nossa luta pela busca ancestral e pela liberdade dos conceitos colonialistas.

Nossos ancestrais sobreviviam em união, porque sabiam que se quisessem continuar vivos, a luta deveria ser contra os verdadeiros inimigos, e não contra os de sua tribo. Não havia instrução, mas havia resistência.

Hoje, vivemos questões que emendam militâncias, disputas de ego e interesses próprios. É muito cacique para pouco indígena e grande perda de tempo com discurso demagogo e desunido.

*Renata Silva é carioca da gema, nasceu numa terça-feira de carnaval, no subúrbio do Rio de Janeiro. É mãe de 6 filhos, candomblecista, tatuadora, educadora social e redatora copywriter.

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