A proposta de reforma tributária sobre a renda, atualmente em discussão no Congresso Nacional, representa um dos eixos mais sensíveis e estruturantes do redesenho do sistema tributário brasileiro. Após a promulgação da Emenda Constitucional nº 132/2023, que instituiu o novo modelo de tributação sobre o consumo, o foco das atenções se desloca para a tributação sobre a renda, um campo historicamente marcado por distorções, regressividade e tratamentos assimétricos entre pessoas físicas e jurídicas.
O desafio é enfrentar essas distorções sem comprometer a segurança jurídica, a atratividade econômica e a neutralidade fiscal, pilares fundamentais de qualquer reforma eficaz e duradoura.
Atualmente, o sistema de tributação da renda no Brasil apresenta múltiplas falhas que fragilizam sua legitimidade e eficácia. Uma das principais críticas reside na baixa progressividade do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF), agravada por um modelo que permite, por exemplo, a isenção de lucros e dividendos distribuídos a sócios e acionistas desde 1995. Ao mesmo tempo, trabalhadores assalariados, que não contam com os mesmos mecanismos de planejamento tributário, acabam onerados proporcionalmente de forma mais intensa, o que fere os princípios constitucionais da capacidade contributiva e da isonomia tributária.
A proposta apresentada pelo governo federal, em fase de discussão desde 2021 e que deve ser desdobrada em projetos de lei complementar, visa restabelecer uma maior progressividade, reintroduzindo a tributação sobre lucros e dividendos, com alíquota de 15%, e ao mesmo tempo promovendo ajustes nas faixas de isenção e nas alíquotas do IRPF. Outra frente importante é a reformulação da tributação sobre rendas do capital, com foco na equalização entre os diferentes tipos de investimentos e a mitigação de brechas para arbitragem fiscal.
No campo da tributação corporativa, um dos pontos mais controversos diz respeito à proposta de redução da alíquota do Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) como forma de compensar a tributação de dividendos.
Críticos argumentam que essa medida pode beneficiar grandes empresas em detrimento das micro e pequenas, especialmente aquelas organizadas sob regimes simplificados como o Simples Nacional, que já operam com margens reduzidas e limitada capacidade de repassar aumentos de carga tributária. Além disso, a compatibilização dessa reforma com o novo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) exigirá ajustes finos para evitar cumulatividade e garantir coerência no sistema tributário como um todo.
Do ponto de vista jurídico-constitucional, a reforma da tributação da renda precisa respeitar o pacto federativo e os limites impostos pelos princípios tributários constitucionais. A proposta deve ser cuidadosamente calibrada para não configurar confisco ou violar a segurança jurídica. Além disso, é essencial que os projetos de lei que detalharão a reforma passem por um processo legislativo amplo, transparente e participativo, envolvendo especialistas, representantes da sociedade civil, entidades de classe e o setor produtivo.
A tributação da renda tem papel fundamental na redução das desigualdades e na construção de um modelo fiscal mais justo. Em um país com forte concentração de renda e patrimônio, a reforma é também uma ferramenta de justiça distributiva.
Contudo, para que isso se concretize, é necessário que a reforma não apenas aumente a arrecadação de forma linear, mas que promova uma redistribuição efetiva dos encargos tributários, concentrando-os em quem efetivamente detém maior capacidade econômica, em consonância com os fundamentos do Estado Democrático de Direito.
Outro ponto sensível é a relação da reforma com o ambiente internacional. Em um cenário global de crescente cooperação fiscal, iniciativas como o acordo da OCDE sobre tributação mínima de multinacionais (Pillar Two) e o combate aos paraísos fiscais tornam imprescindível que o Brasil alinhe sua legislação a padrões internacionais de transparência, compliance e integridade fiscal. A reforma da renda deve, portanto, ser pensada também sob a ótica da inserção internacional do país e da sua competitividade no cenário global.
Em síntese, a reforma tributária da renda é uma medida necessária e urgente, mas que requer cautela técnica, sensibilidade política e responsabilidade social. Não se trata apenas de alterar alíquotas ou bases de cálculo, mas de redesenhar um sistema que impacta diretamente a distribuição de riqueza, os investimentos produtivos, o consumo e o bem-estar da população.
A oportunidade de corrigir distorções históricas está posta , e o seu aproveitamento dependerá do compromisso com a construção de um modelo tributário mais justo, transparente e funcional.
Alline Guimarães Marques – Advogada. Mestre em Direito Tributário e Finanças Públicas pelo IDP/DF, Especialista em Direito Tributário pela Escola Educacional Damásio / SP, com Titulação em ESG pela Universidade Panthéon Sorbonne – Paris/França e Titulação em Direito Público e Privado 4.0 pela Universidade de Coimbra/Portugal.