Dormir deveria ser o momento em que o corpo desliga, reorganiza e reinicia seus sistemas. Mas, para quem vive com fibromialgia, a noite costuma ser uma batalha silenciosa e desigual. A dor não “espera amanhecer”. Ela acompanha o paciente até a cama, deita junto e, muitas vezes, reclama mais alto justamente quando o corpo tenta descansar.
Curiosamente, esse fenômeno não é psicológico: é fisiológico, mensurável e tem assinatura própria no sistema nervoso.
Quando o cérebro não desliga
A fibromialgia altera a forma como o sistema nervoso interpreta estímulos. É como se o cérebro trocasse o “modo noturno” pelo “modo alerta”. Eu costumo explicar assim:
“O paciente dorme. Mas não descansa. O cérebro até fecha a porta, mas mantém a luz acesa por trás.” Essa hiperexcitabilidade reduz o sono profundo (estágio N3), a fase em que o corpo recalibra a dor, reorganiza memórias e libera hormônios reparadores. Sem essa etapa, o sono fica leve, fragmentado e facilmente interrompido.
Curiosidade neurofisiológica
Pesquisas mostram que muitos pacientes com fibromialgia apresentam ondas alfa invadindo o sono profundo — um padrão que não deveria existir. É como se o cérebro continuasse parcialmente desperto dentro do sono profundo. Esse fenômeno tem até nome bonito: alpha-delta sleep.
E o resultado? Acordar cansado, mesmo dormindo muitas horas.
Distúrbios do sono que caminham com a fibromialgia
Além da fragmentação, vários distúrbios frequentemente coexistem:
•Insônia de manutenção (acordar várias vezes)
•Apneia obstrutiva leve a moderada
•Síndrome das pernas inquietas
•Movimentos periódicos de membros
•Redução do limiar para microdespertares
E aqui entra uma curiosidade clínica importante: a apneia é duas vezes mais frequente na fibromialgia, e muitas vezes subdiagnosticada porque os sintomas são atribuídos apenas à dor. Um círculo vicioso que se retroalimenta. Pouca gente sabe, mas dor e sono são sistemas gêmeos.
Quando um falha, o outro degringola.
•Sono ruim → aumenta substâncias pró-inflamatórias → facilita a dor
•Dor elevada → impede relaxamento → fragmenta ainda mais o sono
É literalmente um loop biológico. “Tratar o sono é tratar a fibromialgia. Quando o paciente volta a dormir, o quadro inteiro melhora.”
O que a ciência moderna tem feito por esse sono difícil?
1. Tratamento medicamentoso individualizado
Nada de “receita de bolo”. O alvo é sempre o perfil neurobiológico de cada paciente.
Podem ser utilizados:
•moduladores centrais de dor,
•antidepressivos específicos para arquitetura do sono,
•fármacos para pernas inquietas,
•melatonina em dose cronobiológica,
•e estratégias para melhorar a profundidade do sono.
2. Tecnologias emergentes
Aqui entram ferramentas que vêm ganhando espaço:
•Estimulação elétrica transcraniana (tDCS)
•Neuromodulação não invasiva para redes de dor
•Laser de baixa intensidade
•Dispositivos inteligentes de monitoramento e feedback
Cada uma delas atua em um elo diferente da cadeia dor-sono.
3. Terapias integrativas que reduzem hiperativação
Acupuntura, exercícios leves, mindfulness, meditação guiada e TCC-I (terapia cognitivo-comportamental para insônia). Essas práticas diminuem o “volume” da hiperexcitabilidade do sistema nervoso, conceito essencial na fibromialgia.
Higiene do sono: pequena intervenção, grande impacto Pequenas mudanças têm efeito mais potente do que parecem:
•evitar telas antes de dormir
•rotina de horários fixos
•ambiente escuro, silencioso e fresco
•ritual de desaceleração
•evitar estímulos cognitivos à noite
O cérebro gosta de previsibilidade especialmente um cérebro sensível.
Conclusão: dormir é parte do tratamento não um detalhe. O sono é o maior modulador fisiológico da dor. Sem ele, qualquer intervenção perde força. Com ele, tudo melhora: dor, energia, foco, humor e qualidade de vida.
E é por isso que repito sempre: “Quando o paciente com fibromialgia volta a dormir, ele volta a viver.”
Por: Dr. Carlos Gropen – Especialista em dor